domingo, 8 de dezembro de 2013

A MADRINHA (11)

Tinham passado alguns meses sobre o casamento de Maria Teresa e todos pareciam satisfeitos com as mudanças que tinham tido lugar desde então. Não só os da casa, onde ninguém se sentia excluído das decisões e assumia a sua responsabilidade pessoal relativamente às mesmas, mas, sobretudo, os de fora, que começavam a aperceber-se que as relações de trabalho podiam ser diferentes, com vantagens para ambos os lados. Não tardou que Antero Meireles se tornasse o patrão mais cobiçado das imediações, obrigando os seus pares a seguirem-no nalgumas medidas. Por entre dúvidas e algumas inquietações, Antero foi dando ouvidos aos filhos e ao genro, que pareciam funcionar em perfeita sintonia, e não tardou a reconhecer que os jornaleiros trabalhavam com outro ânimo e estavam mais disponíveis para pequenos serviços extra que, por norma, fariam dentro do horário de trabalho. Porém, desengane-se quem julgar que a exigência e o rigor no cumprimento das tarefas tinham abrandado, pelo contrário, tudo era planeado ao detalhe e não havia lugar para qualquer tipo de desleixo.
      - Ó tia, não acha que o meu pai até parece mais novo, de há uns tempos para cá? – inquiriu Armando, enquanto observava o pai que remexia umas espigas de milho, avaliando-lhe o tamanho.
      - Pudera! Vocês tiraram-lhe um fardo pequeno dos ombros! E já não era sem tempo! O coitado, estava sozinho para tudo!
      - E acha que a culpa era só nossa?- perguntou Armando, sentindo uma pontinha de recriminação no desabafo da tia.
      - Claro que não! Mas o que lá vai, lá vai! Verdade seja dita: se não fosse o Alexandre, não sei se vocês se conseguiriam entender.
A conversa foi interrompida por Antero que, segundo informou, se tinha acabado de cruzar com a Maria de Jesus. Esta, levava um grande cabaz de verga e dissera-lhe que ia fazer uma visita à Maria Cuca.
      - Há algum problema com a Maria Cuca? – perguntou, aos presentes, adivinhando que, se Maria de Jesus tinha descido ao povoado, é porque alguém estava em apuros.
Foi Clotilde, sempre bem informada, que respondeu:
      - Parece que um dos garotos está doente. Ele sempre foi fraquito e, a fartura também não deve ser muita, para o tratarem como deve ser.
O cunhado ficou pensativo. Afinal, não conhecia assim tão bem a aldeia onde tinha nascido e vivido até àquele dia. Mas o que lhe fazia maior confusão é como é que a comadre, a Maria de Jesus, se apercebia daquelas situações e arranjava sempre maneira de ajudar.
 Nessa tarde, comunicou ao senhor Rafael, o capataz, que dissesse ao Zé da Cuca que precisava de falar com ele, no fim do trabalho.
Da janela do primeiro andar, Maria Teresa viu o irmão mais novo indicar ao homem o local onde o pai se encontrava, no jardim das traseiras. Curiosa, foi até à varanda e ficou a observá-los. Não eram usuais aqueles encontros com os jornaleiros, ao fim do dia, e muito menos naquele local recatado. O homem dirigiu-se ao patrão, de boné na mão e ar acanhado. Maria Teresa não conseguia ouvir o que diziam, mas era notório que, à medida que o pai ia falando, o homem parecia ir relaxando um pouco mais, até lhe parecer relativamente à-vontade. A sua grande surpresa foi quando viu o pai tirar, do bolso, dinheiro que já tinha separado, num pequeno rolo e lho meteu na mão. O homem pareceu perplexo e Maria Teresa não o ficou menos. A sua primeira reação foi um gesto de não poder aceitar, mas Antero pressionou-lhe o dinheiro na palma da mão, fechando-lha em seguida. Acompanhou este gesto com uma amistosa palmada nas costas, em jeito de despedida. Maria Teresa acompanhou o homem com o olhar, até ao portão, e teve a sensação de que ele limpava as lágrimas, num gesto disfarçado. Intrigada, desceu ao encontro do pai e perguntou:
      - Passa-se alguma coisa com o Zé da Cuca? Achei-o estranho.
      - Nada de especial. Coisas de trabalho. Fui eu que o mandei passar por cá.
      - Se não quer contar, não conte. E virou as costas, afastando-se, na esperança que o pai a detivesse e lhe contasse tudo. Mas não deteve. Decididamente, o pai estava a esconder-lhe algo.

O pequeno- almoço estava quase a acabar, quando o pai pediu que baixassem um bocadinho o rádio, porque queria a opinião de todos, sobre um assunto. Aí vem a chave do mistério- pensou Maria Teresa – mas, nem por isso, deu qualquer sinal de entusiasmo. Era bom que o pai percebesse que ela estava um bocadinho zangada com ele.
      - Estive a pensar que era bom que o Dr. Daniel não tivesse que sair cá da terra, mas, provavelmente, qualquer dia, quando o avô lhe faltar, também ele se vai embora, para onde possa ganhar mais dinheiro e fazer outro tipo de carreira. O que é que vocês acham da ideia de fazermos um ajuste com ele e ele, periodicamente, consultar e acompanhar os nossos trabalhadores e as suas famílias? É uma vergonha haver por aí gente que não pode consultar um médico ou tratar-se convenientemente. E, às vezes, são coisas insignificantes que acabam por se agravar.
Reinou um silêncio de espanto, mas, ao mesmo tempo, de emoção. Alexandre foi o primeiro a reagir:
      - Desculpem ser o primeiro a falar, mas isso dar-me-ia muita alegria e faria a alegria de muita família. Além disso, outros lhe seguiriam as pisadas e isso ajudaria o Dr. Daniel a fixar-se por aqui.
Todos se mostraram entusiasmados com a ideia, mas a tia Clotilde tinha uma objeção:
      - Isso já seria muito bom, mas alguns, coitados, também não têm dinheiro para os medicamentos.
      - Isso, depois se vê, também se arranja maneira de eles os pagarem como puderem, sem ser de uma só vez.
      - O pai não para de nos surpreender! – exclamou Armando, agradado.
Maria Teresa continuava calada. O pai resolveu confrontá-la:
      - Estás muito calada! Não te agrada a ideia?!
      - Ainda não decidi se lhe perdoo os segredinhos de ontem, ou não - respondeu a filha, numa pose sisuda que, como era seu costume, só conseguiu manter por breves segundos. E desatou a rir:
      - É claro, que agrada. Estamos, todos, muito orgulhosos de si.
Antero levantou-se da mesa e, sem dizer nada, dirigiu-se para a porta, numa atitude de quem dispensa companhia. Mergulhou na manhã cinzenta e deambulou sob o manto plúmbeo que cobria a aldeia. Deu por si a caminhar, sem rumo, e a reparar no silêncio e no vazio que pareciam pousados sobre todas as coisas. Fixou a vista, para melhor enxergar e, quando deu por si, estava no Roseiral. Mas o que é que ele estava ali a fazer, àquela hora da manhã, com tanto trabalho para ser feito e tanta coisa para resolver? Bem, já bastava de passeio matinal. O melhor era procurar o doutor Daniel quanto antes, não fosse algo ou alguém fazê-lo mudar de ideias.

A novidade espalhou-se pela aldeia como lume em estopa. Desta vez, foi o padeiro, que aproveitou a ronda da manhã para se certificar de que todos os seus fregueses tinham sido devidamente informados. Pena era, que nem todos fossem abrangidos pela benesse, mas cada coisa a seu tempo, garantia o Chico da Pinta – o padeiro - que, claro está, tinha a certeza que, mais dia, menos dia, todos os outros fazendeiros fariam o mesmo.
      - Deus o oiça, senhor Chico, que o meu João ainda me apanha alguma pneumonia devido a tanta constipação mal curada. Se ele fosse ao médico e à farmácia de cada vez que se constipa, deixava lá a jorna toda – comentou a D. Alzira, com um brilho esperançado no olhar.
      - Aquelas ideias, vindas lá do Cabeço, ainda nos levam todos à ruína – desabafou a tia Rita, acabadinha de chegar à Quinta do Freixo, no regresso de uma visita a uma amiga, na Vila de Cima. E o Antero que costumava ser um homem tão sensato!
      - E que falta de sensatez foi a dele, desta vez? – indagou a tia Júlia , ajudando-a a descer da charrete em que gostava de se transportar, neste tipo de visitas, pelas redondezas.
      - Imagina tu… - começou a tia Rita, um pouco ofegante pela emoção.
 Pelo começo, Júlia anteviu uma longa história e preparou-se para o pior.
      - Conta-me, depois, enquanto tomamos um chá. Parece-lhe bem?
A tia assentiu, com um gesto vago, de quem precisa tomar fôlego, para voltar à carga.

Contra todas as expetativas, desta vez, Antero não teve que lidar com qualquer tipo de confrontação vinda dos seus pares e, para surpresa de todos, uma semana mais tarde, a Professora Mercedes informava os pais dos alunos que, o Sr. Galvão Teles, da Ramada Grande, tinha acordado com o Dr. Daniel consultar, medicar e acompanhar todos os alunos que frequentavam a escola da aldeia. Isto, claro, se os pais não se opusessem.
      - Opor-se? Nós somos pobres, mas não somos mal- agradecidos! E se o Sr. Galvão Teles nos quer fazer esse favor, só temos de ficar satisfeitos! – desabafou a mãe da pequena Esmeralda, enquanto a professora a punha ao corrente da situação.
      -  Ora, até que enfim, os vejo competir por alguma coisa que valha a pena! – suspirou Maria de Jesus, pouco dada a comentários deste tipo, mas farta da exploração que grassava na aldeia e da miséria envergonhada de muitas famílias, a qual parecia invisível aos olhos dos abastados.
E, retomando a sua postura usual, disse para consigo:
      - O Dr. Daniel  e a professora Mercedes, vão precisar de ajuda com aquelas crianças todas, ainda por cima, enfrentando uma experiência nova que, de algum modo, as vai intimidar.
E, como era seu costume, em situações análogas, desceu ao povoado.

As ajudas e melhorias – como lhes chamavam os aldeãos; alguma justiça – no pensar  de Maria de Jesus – foram-se instalando na aldeia, para ficar, e a vida, ainda que continuasse dura por aquelas bandas, começava a apresentar alguns contornos bastante aceitáveis. Uma coisa era certa: fosse qual fosse a origem da benesse, todos sabiam que a deviam, em primeiro lugar, à Casa dos Álamos, pela mão de Alexandre e Maria Teresa, com a marca indelével de Maria de Jesus. Esta, representava um mundo inacessível para quase todos eles, um mundo de escolhas que eles nunca tinham compreendido, o poder de dizer “ não” que nenhum deles se atrevia a desejar para si próprio. Mas com Alexandre e Maria Teresa era diferente. Eles representavam o mundo tangível, organizado, expetável, em que cada um deles projetava os seus sonhos e anseios e a quem estavam agradecidos por os terem ajudado a mudar as suas vidas. Foi, pois, com grande euforia e expetativa que a notícia da gravidez de Maria Teresa foi acolhida. À mistura com alguma preocupação, a gente da aldeia desfiou os meses, aventou nomes para a criança, e alguns padrinhos começaram a perfilar-se no horizonte. Até que o grande dia chegou.


                                                                                                                                         (continua)

terça-feira, 15 de outubro de 2013

A MADRINHA (10)

A vida na casa dos Álamos nunca mais foi a mesma, depois da chegada de Alexandre. O que fora entendido como algo que afetaria só a vida de Maria Teresa vinha, agora, à luz, como uma mudança radical pronta a abalar toda a estrutura da família e dos papéis que, cada um, nela desempenhava. A tia Clotilde, cujo avental era um atributo de poder e lhe conferia um estatuto quase obscuro, por demais aceite pelos homens da casa, foi a primeira a ser atingida:  
      - Bem, tia, já passou uma semana, já não há sobras da boda, é altura de cada um tratar da sua vida. A partir de amanhã, eu própria prepararei as refeições para mim e para o Alexandre. Entretanto, aqui, no rés-do-chão, tudo ficará como dantes. E vamos estar todos juntos, sempre que quisermos.
A tia não respondeu. Pousou a colher com que provava o ensopado de borrego para o jantar e procurou a cadeira mais próxima. Ia a dizer qualquer coisa, mas limitou-se a abrir e fechar a boca, de espanto. Valeu-lhe a governanta que veio, em seu auxílio, com um copo de água com açúcar. Ia fazer-lhe bem e não valia a pena ficar assim, afinal de contas, continuavam todos juntos, paredes-meias. Mas a tia não se conformava. E foi assim, num pranto, que o cunhado a veio encontrar, no regresso da sua reunião com os amigos, no café do Antunes:
      - Mas o que é que aconteceu? Que pranto é esse?- perguntou surpreso.
      - Nada de especial – respondeu Clotilde, em tom sarcástico – é só a tua filha que já não quer tomar as refeições connosco e que parece que não quer nada com o rés-do-chão desta casa.
      - Que exagero! – atalhou a governanta – receando uma reação semelhante da parte do pai de Maria Teresa.
      - Exagero?! Mas tu não ouviste o mesmo que eu ouvi?! – perguntou a tia, indignada.
      - Claro que não! E se o senhor Meireles cá estivesse, também não teria ouvido. Não foi nada disso que a menina quis dizer.
      - Bem, estou a ver que o melhor que tenho a fazer é falar com a Maria Teresa. E subiu ao primeiro andar, onde a filha preparava os legumes para a sopa do dia seguinte.

Maria Teresa pô-lo ao corrente do que pensava fazer e pediu-lhe, encarecidamente, que a apoiasse nessa ideia. Era o melhor para todos. Seria um mau começo, aquela dependência total do patriarca da família e não lhe parecia que o Alexandre se sentisse muito feliz com isso. Afinal, para que teriam servido todas aquelas obras? Para continuarem todos como se nada tivesse acontecido? Além disso, tinha a certeza que o Alexandre continuaria a apoiar os pais e a ajudá-los, quando fosse preciso. Ele não tinha sido comprado por ninguém.
À medida que a filha ia falando, Antero sentia avolumar-se o medo de ter perdido a filha tal como a conhecera até ali, mas, ao mesmo tempo a voz da razão segredava-lhe que aquilo fazia todo o sentido e que a sua situação, na casa, deveria ser repensada. De repente, inundou-o uma sensação de mal-estar. E os outros dois filhos? Seria que eles também sentiam aquele desejo de se livrarem do jugo do “velho patriarca”? Assolou-o um aperto, no coração. E as criticas que lhes tecia não seriam um pouco injustas, por não terem a tal “ margem de manobra” de que, há uns tempos atrás, lhe tinham falado? E desceu, cabisbaixo e pensativo.
      - Estás a ver como eu tinha razão? – perguntou a cunhada,  ao vê-lo naquele estado – também ficaste surpreendido, não é verdade? 
      - Sim, mas não pelas mesmas razões que tu. Fiquei surpreendido com o discernimento da Maria Teresa. Afinal, acho que apesar de ter sido criada sem mãe, fizemos um bom trabalho com ela. Melhor do que com os irmãos! Mas nunca é tarde…
Clotilde franziu o sobrolho. O que é que ele quereria dizer com aquilo? Mas, para dizer a verdade, também não lhe apetecia falar mais daquele assunto. Já tinha que chegasse para o resto do dia.

O jantar decorreu mortiço, sem os risos e as picardias habituais entre Maria Teresa e os irmãos, frequentemente aquietadas ou exacerbadas pelo pai ou pela tia. Quando se preparavam para abandonar a mesa, Antero dirigiu-se ao Alexandre:
      - Gostava de te dar uma palavrinha ali, no escritório. Importas-te de me acompanhar?
Alexandre hesitou, por um momento. Em seguida, perscrutou os cunhados e perguntou:
      - Tem a certeza que não é nada que possamos tratar aqui?
      - Claro! Claro, que pode – respondeu Antero, pouco à vontade, voltando a sentar-se.
Os outros seguiram-lhe o exemplo.
      - Parece que vocês têm planos diferentes dos meus, para a vossa vida- começou  Antero, dirigindo-se à filha e ao genro. Se calhar já devíamos ter falado nisso, mas pensei que podia contar com o Alexandre para me ajudar a levar a casa para a frente e modernizar algumas coisas por aí, mas pelo visto, querem seguir a máxima “casamento, apartamento.” E estou sozinho, outra vez!   
      - Peço imensa desculpa- interrompeu Alexandre- mas o senhor não está, nem nunca estará sozinho. O que eu e a Maria Teresa queremos é que o senhor possa contar igualmente com todos nós. Eu não quero nenhum estatuto diferente do dos seus filhos. Tenho conversado muito com eles e aposto que o senhor ficaria muito surpreendido se os ouvisse e lhes desse alguma credibilidade.
      - Pelo visto, não perdes tempo! Ainda agora chegaste e já estás do lado deles! – exclamou Antero, com algum desalento.
A estas palavras, Maria Teresa reagiu, com alguma veemência:
      - Ó pai, o pai não está a dizer que gostaria que o Alexandre estivesse contra os meus irmãos, pois não? E também não está a dizer que os meus irmãos estão contra si, ou estará? Mas afinal, o pai quer a família unida ou separada?
Perante o silêncio do pai, Maria Teresa parecia disposta a continuar, mas foi interrompida por Armando, que entretanto se tinha levantado da mesa, seguido do irmão, passou por trás dela e, colocando-lhe a mão no ombro, disse:
      - Deixa, mana, trata da tua vida e não te preocupes connosco.
Aparentemente recomposto do efeito das palavras de Maria Teresa, Antero dirigiu-se aos filhos:
      - Mas aonde é que vocês vão? Não têm nada para dizer?
      - E vale a pena dizer alguma coisa? – retorquiu Carlos, continuando em direção à porta.
      - Já agora gostava de saber a vossa opinião, já que, hoje, parece que toda a gente tem contas a ajustar comigo. Ao menos, desembuchem todos, de uma vez!
      - Pois, então, vou dizer-lhe o que penso- começou Carlos, retrocedendo alguns passos – acho que se quer o Alexandre a trabalhar consigo, deve pagar-lhe um salário que lhes permita organizarem a vida deles como eles quiserem e, sim, acho muito bem que tomem as decisões deles sozinhos, sem terem que se sujeitar às regras, nem aos horários da família. De contrário, não tardará que seja o pai a determinar quando é que ele precisa de trocar de botas.
      - Já acabaste? – perguntou Antero, aparentemente mais calmo. Fez uma pequena pausa e continuou:
      - Dizem que a noite é boa conselheira e estamos todos a precisar de dormir sobre tudo isto. E virando-se para Clotilde:
      - E tu?! Não dizes nada? Se tiveres alguma reclamação a fazer, aproveita agora, que estamos em maré de protesto...
      - Eu…eu… - balbuciou a cunhada - gostava que continuássemos a tomar o pequeno-almoço juntos!
      - Claro que sim, respondeu Maria Teresa, seguida dos restantes membros da família. Nós íamos lá perder os seus mimos matinais! E, a propósito, quando é que voltamos a ter aquele bolo de mel de que tanto gostamos?
      - Amanhã mesmo, fica prometido! – respondeu a tia, recuperando o alento perdido e devolvendo-se aos seus afazeres .    

Na manhã seguinte, lá estava o bolo de mel, acabado de fazer e a perfumar toda a cozinha, a maior possessão do território da tia Clotilde. Mas Antero, não estava. Segundo o capataz, tinha saído cedo, a cavalo, e ainda não voltara. Era a primeira vez que tal acontecia e todos os presentes se inclinavam já para uma atitude de retaliação, por parte de Antero, quando este entra apressado, desculpando-se pelo atraso e comentando, bem- disposto:
       - E logo hoje, que me arriscava a ficar sem bolo!
E, mudando de assunto:
       - Temos que falar sobre o olival das Estevas. Depois da safra, se calhar o que deveríamos fazer era arrancar aquelas oliveiras e substituí-las por oliveiras novas e de outra espécie. Querem lá ir, dar uma vista de olhos?
       - O primeiro a responder foi Armando:
       - Se o pai quiser, podemos acompanhá-lo, mas não precisamos de lá ir, para vermos o que já devia ter sido feito há muito tempo. Essa colheita tem-nos saído muito cara e essa azeitona funde muito mal. Esse olival é, de facto, o pior, mas, progressivamente, deviam ser todos replantados.
      - Acabavam por se ir pagando uns aos outros- acrescentou Carlos, com ar de entendido, para grande surpresa do pai.
      - E tu, Alexandre, o que é que achas de tudo isto?
      - Concordo com os seus filhos. Além disso, qualquer dia vem por aí a mecanização e é bom que não lhe barremos o caminho.
      - Bem, então parece que estamos todos de acordo! – rematou Antero, com algum alívio.
      - E porque é que não deveriam estar, perguntou Maria Teresa, trocando com a tia um olhar cúmplice.

A conversa selou um recomeço na Casa dos Álamos. E, com grande surpresa, a aldeia foi-se habituando a um Antero Meireles quase sempre acompanhado dos filhos e do genro, não só em situações de trabalho, como de lazer, como era o caso dos encontros de fim-de-tarde, no café da aldeia. A princípio, os seus pares mostraram-se um pouco constrangidos, porque alguns dos assuntos em discussão tinham sido, até ali, prerrogativa dos chefes de família, mas rapidamente perceberam que tinham de se habituar a torna-los extensivos aos novos parceiros de negócios. E, a pouco e pouco, cada um deles foi trazendo também os filhos ou os genros a esses encontros, transformando-os em algo de diferente, que começava a agradar a todos. Havia naqueles encontros de gerações uma promessa velada de continuidade que não deixava de os sossegar.
      - Isso são coisas do Alexandre – diziam uns.
      - Eu diria que são coisas da Maria de Jesus, que sabe muito bem como dar a volta às coisas – diziam outros.
      - Seja como for, assim é que deve ser! - comentavam os jornaleiros, a quem ninguém pedia opinião, mas que, nem por isso, deixavam de a dar.

Mas as maiores mudanças ainda estavam para vir. Quase no fim da safra do azeite, Maria de Jesus, apercebeu-se que a azeitona do pequeno olival do Zé Mouco, que lhe assegurava o azeite para o sustento da família, ainda estava por apanhar, devido à doença prolongada da mulher. Todos anos, o marido tirava um dia ou dois ao trabalho que prestava por conta do Meireles e, juntamente com a mulher e a filha, apanhavam a azeitona. Nesse ano, com a mulher doente, a filha a ter de cuidar dela e ele a não poder prescindir da jorna devido às enormes despesas que a doença dela lhe acarretava, a azeitona lá estava, por apanhar. Maria de Jesus falou com os filhos:
      - Falei com algumas mulheres que não se importam de ajudar a apanhar a azeitona do Mouco, mas precisamos de um homem ou dois para a varejar. Entre vocês, quem é que está disponível para ajudar?
      - O problema é que, esta semana, temos uma encomenda grande para entregar – disse o Guilherme, corroborado pelo pai.
      - Não é preciso, eu e o Eduardo vamos lá, só tenho que avisar o meu sogro - comprometeu-se Alexandre e assim fez.
      - A azeitona do Zé Mouco? A tua mãe tem a certeza que ela está por apanhar? – indagou o sogro, algo surpreendido.        
      - Claro que tem! O senhor sabe como é a minha mãe, não se mete na vida de ninguém, mas está sempre atenta a estas coisas – confirmou Alexandre.
      - A quem o dizes!... Pois vamos fazer assim: amanhã, acaba-se a apanha na Cabeça Alta e, antes de se mudar para outro olival, leva-se o rancho ao olival do Mouco e aquilo apanha-se que é um instante. Diz à tua mãe que esteja descansada que não é preciso cá ninguém a ajudar, nós tratamos disso.
Mas… o Mouco também faz parte do rancho. Ele nem vai acreditar! – retorquiu Alexandre, com alguma dificuldade em, ele próprio, acreditar no que estava a ouvir.
      - Ainda bem, porque assim poupa-me o capataz. Têm lá o dono do olival, para tomar conta do trabalho.
    
Quem não gostou muito desta atitude do Meireles foram os outros fazendeiros que, nas suas reuniões habituais, não se coibiram de o alertar para os perigos dessas familiaridades.
      - Ó Meireles, não achas que exageraste um bocadinho?! Não achas que estás a amolecer um bocado, com essa gente? Qualquer dia, não tens mão neles! Se a moda pega, não tens mãos a medir! – advertiu o Rodrigues, da Quinta de Cima.
      - Isso preocupa-me pouco. E, sabes uma coisa? Há muito tempo que não dormia uma noite descansada, como nessa noite. É capaz de ser um bom remédio para as insónias!
E a conversa ficou por ali.
Mas o destino gosta sempre de ter a última palavra e, desta vez, fez mesmo questão de se pôr do lado do Meireles.

Tinham passado alguns meses e chegara o tempo das vindimas. Depois de toda a azáfama da preparação das adegas, chegara a vez dos cachos dourados, destinados à secagem, reluzirem nos passadouros, sob o olhar vigilante dos capatazes que, ao menor sinal de mudança de tempo, organizavam a sua recolha apressada para debaixo dos respetivos telheiros. Pois, num desses fins-de-semana de verão, em que nada faria prever qualquer mudança de tempo, dois acontecimentos se vêm a conjugar para que a aldeia ficasse quase deserta e os passadouros à mercê do acaso. Por um lado, tinha tido lugar, numa aldeia bastante afastada dali, a primeira missa celebrada por um filho da D. Fernanda Gouveia, recém – viúva, e que todos os seus pares tinham feito questão de acompanhar naquele ato simbólico, ao qual se seguiu um almoço demorado; por outro lado, tinha lugar a festa anual em honra de Santa Eufémia cujas celebrações religiosas tinham decorrido com toda a normalidade, debaixo de um calor ardente, mas cujo recinto, destinado aos festejos pagãos, se situava em campo aberto a cerca de 1,5 km da aldeia. Com o chegar da noite, as luzes, o barulho e a alguma euforia, poucos foram os que se aperceberam que as condições meteorológicas se tinham alterado completamente e só quando o vento se levantou, em fúria, e a chuva começou a cair, em catadupa, é que a população se apercebeu que a única coisa que poderia fazer era tentar pôr-se a salvo da intempérie.
O Zé Mouco, cuja mulher continuava doente e que tinha ficado em casa a fazer-lhe companhia, enquanto a filha ia até à festa com as amigas, apercebeu-se da mudança de tempo e, sabendo que a família do patrão estava toda ausente, dirigiu-se ao passadouro com um vizinho. Maria de Jesus, sem nenhum dos homens em casa, tinha-se socorrido de um garoto que encontrara no caminho e também tinha acabado de chegar. Os quatro conseguiram pôr a salvo toda a produção das uvas destinadas à secagem. Quando o capataz chegou, encharcado até aos ossos, encontrou-os acoitados sob o telheiro, em amena cavaqueira, à espera que a chuva passasse. Aliviado, não pode deixar de exclamar:
      - Nem imaginam como o senhor Meireles vos vai ficar agradecido! Ele detesta ver coisas estragadas!
      - Não é preciso agradecer. A vida dá-nos sempre a oportunidade de retribuirmos favores, não achas, Zé? – perguntou Maria de Jesus sem , contudo, esperar qualquer resposta. Os atos falavam por si.

Quando se voltaram a encontrar, no café da aldeia, nenhum dos amigos mencionou o acontecido. Foi o Meireles quem puxou a conversa.
      - Então, o prejuízo com as uvas foi grande?
      - Claro, que foi! Pelo visto, temos menos amigos do que tu! – retorquiu o Rodrigues, sentindo-se em falta, devido aos comentários que fizera sobre a ajuda ao Zé Mouco.
      - Mesmo assim, acho que ainda não tenho os suficientes – deixou escapar Antero, sem qualquer ironia - como o mundo está, parece que isto já lá não vai, com cada um a puxar para o seu lado.
      - Parece que as mudanças, lá pelos Álamos, não se ficaram pelas obras – comentou o  João Matos, no seu tom pausado, mas incisivo.
Alexandre, que se mantivera calado até ao momento, resolveu opinar:
      - Sabe, quando se alargam as janelas, vê-se tudo mais claro. E, do nosso primeiro andar, demos conta que os palácios estão cada vez mais iluminados e os casebres cada vez mais às escuras. Isso é tão aberrante, que não pode ser bom para ninguém e, quando todos se derem conta disso, será bom que, por aqui, continuemos todos a poder trabalhar em paz.
Reinou um silêncio pesado. E fosse lá o que fosse, que esse silêncio quisesse dizer, a verdade é que, contra ventos e marés, naquele dia, a aldeia de Vale Formoso virou uma página da sua história.       


                                                                                                                ( continua )

domingo, 22 de setembro de 2013

A MADRINHA (9)

A notícia só chegou à aldeia no dia seguinte, quando os sinos dobraram a finados. À Casa dos Álamos chegou com o café da manhã, pela voz dos jornaleiros habituais. A defunta era a D. Teolinda Palhais, da Aldeia da Pena e não se falava de outra coisa. A sua fama advinha-lhe do facto de, durante quase trinta anos, ter vestido todas as famílias abastadas das redondezas, determinando, assim, os trajes e adornos com que se apresentavam em todas as ocasiões festivas da comunidade ou entre os seus pares. Parte da sua vida tinha sido passada em Lisboa, como modista, num atelier na Rua da Prata, mas regressou à terra para servir de amparo aos pais já idosos e doentes e, por ali ficou. No entanto, como profissional que era, mantinha estreito contacto com os seus congéneres na capital, onde se deslocava com frequência, não só para se manter a par da moda, mas também para se fazer portadora das novas revistas, tecidos e acessórios que faziam as delícias das suas clientes. E Maria Teresa não era exceção. O tecido para o vestido de noiva já estava comprado, o feitio escolhido e as medidas tiradas, mas, como mandava a tradição, o mesmo só seria confecionado na última semana, para que lhe assentasse como uma luva. Foi, pois, com grande alvoroço, que a filha de Antero Meireles se inteirou da situação.
      - E agora? O que é que eu faço? – perguntou Maria Teresa a si mesmo, mal podendo conter a sua deceção.
      - Vamos ter calma – aconselhou o pai - ainda temos quase quinze dias. Porque é que não telefonas à enfermeira Isilda e lhe pedes que te oriente, em Lisboa, na compra de um vestido já feito? Segundo me parece, vocês até ficaram amigas. O que é que achas? 
Maria Teresa suspirou, aliviada. 
      - É capaz de ser uma boa ideia! Depois do almoço, vou ao posto público telefonar-lhe – anuiu a rapariga. E assim fez.

No entanto, a conversa com Isilda deixou-a perplexa. A amiga disponibilizou-se, gentilmente, para a acompanhar no que fosse preciso, a casa estava à sua disposição, mas, perante a pena que sentiu em Maria Teresa por não poder ter o vestido que tinha idealizado, deu-lhe uma sugestão que a deixou estupefata:
      - Mas há uma solução melhor: se já tens o tecido e o modelo, falas com a minha tia Maria de Jesus e ela faz-te um vestido digno de uma princesa e em três tempos!
Só podia ter percebido mal. A Maria de Jesus? A mãe do Alexandre? – repetiu Maria Teresa, só para ter a certeza que estavam a falar da mesma pessoa.
      - Essa mesma. Quem havia de ser? E acredita que tem umas mãos de fada!
      - Umas mãos de fada? – pensou Maria Teresa, incapaz de emitir qualquer som.
Refeita da surpresa, mas sem saber o que dizer, a rapariga balbuciou:
      - Não sei. Não queria incomodá-la. Vou pensar nisso e depois digo-te o que decidi.
Isilda não pode deixar de sorrir para si mesma. De facto, não a espantava a hesitação de Maria Teresa. A tia Jesus, como lhe chamava, era uma caixinha de surpresas!
Em casa, as respostas às perguntas da tia foram tão evasivas que Clotilde chegou a pensar que o pedido de Maria Teresa não tinha tido o eco esperado, na amiga da capital:
      - Não me digas que essa tal Isilda não está para aí virada!
      - Não é nada disso, tia – reagiu a sobrinha - mas fez-me uma sugestão que me deixou baralhada. E contou à tia o sucedido.

      - Homessa! Só faltava casares-te com um vestido de noiva feito por uma costureira de meia tijela! Sempre queria saber o que é que ias dizer às tuas tias do Freixo. Havia de ser bonito!
A conversa foi interrompida por Antero e Alexandre que acabavam de largar o trabalho. Ambos perceberam que havia ali um assunto sério a ser tratado, mas as perguntas ficaram para depois. Quando a oportunidade surgiu, Alexandre quis saber o que estava a preocupar a noiva e ela acabou por lhe contar a conversa com a prima. Quanto a Antero, quando foi posto ao corrente das novidades, ficou em silêncio, por uns momentos, também ele sem saber o que pensar e, quando quebrou o silêncio, opinou:
      - A Isilda pareceu-me uma pessoa que sabe o que diz e de muito bom gosto, acho que deverias falar com a Maria de Jesus. No mínimo, ela dar-te-á um bom conselho.
E o conselho não se fez esperar. Tendo Alexandre como mensageiro, combinaram falar, no dia seguinte, à saída da missa. E assim aconteceu. 
Maria de Jesus imaginava todos os dilemas da futura nora e tentou sossega-la. 
      - Não se preocupe, Maria Teresa, vai ter o vestido que tinha escolhido, mas vamos ser discretas. Há um recém-nascido na família que eu ainda não conheço e há algum tempo que ando a pensar visitar. Pois é uma boa altura e, para todos os efeitos, a Maria Teresa aproveita a minha ida a Lisboa, para ter companhia e vai comprar o seu vestido de noiva. Só o seu pai deve saber a verdade, pois assim evita conflitos familiares. Leva-se o tecido e a revista e regressamos com o vestido pronto e tudo em paz. E fique descansada, o vestido vai ficar tal qual o imaginou.
Todas as dúvidas de Maria Teresa se dissiparam. Estava decidido. Assim seria. 

Quando, alguns dias depois, o vestido, digno de um conto de fadas, foi estendido sobre a cama de Maria Teresa, num quarto de janelas abertas, de par em par, para que os raios de sol pudessem realçar a sua beleza e as mulheres da família tiveram permissão de se aproximarem para dizerem de sua justiça, as reações não se fizeram esperar:
      - Mas que maravilha! – exclamou a tia Clotilde , completamente fascinada.
      - Que coisa linda! – repetiam , sem parar, as primas casadoiras.
      - Imagino o dinheirão que terá custado! – calculou a tia Rita, cuja avareza não se compadecia com o deslumbre  dos presentes.
      - Cada vez que penso que ainda te chegou a passar pela cabeça entregares o vestido na mão de uma curiosa, metida a costureira! – desabafou Clotilde, num gesto de alívio.
      - A sério?! – perguntou a tia Júlia , fixando Clotilde. E virando-se para Maria Teresa: que ideia mais tola, menina! Não se esqueça que é uma Meireles!
É claro que não esquecia. Nem podia. Elas faziam o favor de lho lembrar, todos os dias – pensou, com desagrado, Maria Teresa. Mas conteve-se. Aquela não era a altura certa para se rebelar. 

A fama do vestido trouxe consigo algumas surpresas. As senhoras de família que, infelizmente, não estavam disponíveis para assistir à cerimónia - era o que faltava! Qualquer dia , entra-nos o cocheiro pela porta adentro, e  pede-nos a filha em casamento!  - de repente,  todas tinham conseguido lidar com os seus compromissos inadiáveis e tinham muito gosto em acompanhar a menina Maria Teresa, num dia tão especial como aquele.
      - Ah, sim?! - indignou-se Clotilde. Isso é o que se chama ver para crer. E voltou aos seus afazeres, ajeitando o folho do avental.
E o grande dia chegou.
A aldeia despovoou-se para ver os noivos e, entre os que torciam para que o conto de fadas desse certo e os que torciam para que o exemplo não pegasse – era o que faltava! – ninguém conseguiu resistir à magia do momento e todos, em corpo ou só em espírito , ergueram a sua taça à saúde  do jovem casal.
      - A D. Teolinda não teria conseguido ir tão longe, com o teu vestido, Maria Teresa. Lisboa é, de facto, outra coisa! Até a mãe do Alexandre, estava de uma elegância de fazer inveja! - constatou a D. Fernanda Gouveia – durante uma  conversa de fim de tarde, com as amigas, enquanto percorriam a nova estufa que, estava-se mesmo a ver, iria servir de inspiração a algumas mais. 
      - De fazer inveja, não diria, mas não há dúvida que a aconselhaste bem, Maria Teresa – anuiu a esposa do Galvão Teles, com uma pontinha de despeito à mistura. 
Maria Teresa sorriu, vitoriosa. Olhou em redor à procura de Maria de Jesus. Viu-a e esboçou um gesto de chamamento. Maria de Jesus aproximou-se do grupo.
      - Quero apresentar-vos a autora do meu vestido e das suas próprias roupas. Não imaginam as coisas que estas mãos conseguem fazer! E abraçou a sogra, num gesto carinhoso.
      - Ora, faz-se o que se pode, quando é preciso – respondeu Maria de Jesus, com naturalidade.
A primeira reação foi um riso nervoso. Este, propagou-se como um relâmpago, e durou o tempo exato que levaram a perceber que Maria Teresa estava mesmo a falar a sério. De repente, os semblantes retraíram - se, as gargantas aclararam-se, mas as palavras teimaram em atraiçoar, mesmo as melhores das intenções. Não fora o leque da tia Clotilde abafar-lhe o rubor e teria havido desmaio, pela certa. Salvou-as o sentido prático da tia Rita: 
      - Já imaginou, o dinheiro que pode ganhar com a sua arte, agora que ficámos sem a D. Teolinda?
      - Nada que, alguma vez, me pudesse compensar pelo tédio que isso iria trazer à minha vida! –respondeu Maria de Jesus, subindo com passo firme os degraus de cantaria que conduziam à varanda do primeiro andar. No patamar, hesitou um segundo, parou, dando a impressão que tinha algo mais para dizer. Uma lufada de esperança varreu o grupo de amigas. Mas Maria de Jesus limitou-se a sorrir e convidou:
      - Subam, que vale a pena! Hoje vamos ter um lindo pôr-do-sol!         
                                              
                                                                                                                       ( continua )

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

A MADRINHA (8)

A ausência de Maria Teresa mergulhou a Casa dos Álamos numa semipenumbra de sons e gestos que, não fora o barulho de fundo causado pelas obras em curso, dela se diria ter sido, há muito, abandonada pelos seus habitantes. No regresso, o que Maria Teresa veio encontrar, não lhe agradou. O pai, visivelmente mais magro e um pouco pálido, parecia, de repente, sem nada para dizer e pouco que perguntar. E ela que tinha tantas coisas para partilhar com ele! Mas, Maria Teresa insistia:
       - Sabes que até fui a uma matiné no cinema Condes? E que também visitei o Mosteiro dos Jerónimos? E…? – aqui, Maria Teresa calou-se. Decididamente, o pai não estava a ouvir nada do que ela estava a dizer.
      - E disseram-te quando é que os resultados estarão prontos? – perguntou o pai, completamente alheio à conversa da filha.
     - Oh, pai! Não ouviu nada do que eu tenho estado para aqui a dizer, pois não?
     - Desculpa. Contas depois, está bem? – pediu Antero, enquanto se levantava para sair.
     - Então só vai saber tudo daqui a quinze dias, que é o tempo que vai levar até que o doutor Daniel receba os resultados – informou Maria Teresa, tentando mostrar um ar despreocupado.
     - Quinze dias?! …mas, tanto tempo?! – estranhou Meireles, apreensivo.
     - Acha muito? – admirou-se a filha.
     - Uma eternidade – respondeu o pai, com desalento.

Os dias correram lentos e sufocantes, não só pelo calor que já se fazia sentir mas, sobretudo, devido à ansiedade provocada pela espera de notícias da capital. Ao 13º dia, porém, estava a família reunida para o almoço, quando bateram à porta. Clotilde, que tinha ido à cozinha buscar uma travessa, gritou, lá de dentro:
      - Não se incomodem, eu atendo! E juntando a palavra à ação, deu a volta pela adega e atendeu à porta. Era um recado do doutor Daniel. Os resultados já tinham chegado. Quando o Sr. Meireles e a menina Maria Teresa quisessem, já podiam por lá passar. Clotilde sentiu as pernas fraquejarem, mas recompôs-se. Sim, senhor, o recado estava entregue. E voltou para dentro. De volta  à sala, foi interpelada por Armando, que achou a tia um pouco lívida:
      - Aconteceu alguma coisa? Parece nervosa!
      - E não é para estar? – perguntou, por sua vez, a tia, mostrando-se exaltada - o  Miguel nunca sabe onde põe as coisas e depois interrompe-nos o almoço para vir perguntar por elas -­ ­ mentiu a tia, tentando assegurar o sossego da refeição. O silêncio de Clotilde, no entanto, não passou despercebido a Antero e a suspeição foi crescendo, à medida que a refeição ia decorrendo. Além disso, o comportamento de Miguel que o comentário da tia fazia transparecer não assentava no perfil do rapaz. Miguel era uma pessoa responsável e que nunca lhes interromperia uma refeição de ânimo leve. Aguardou pelo fim do almoço, para perguntar:
      - Então, Clotilde, já podes dizer o que aconteceu há pouco, para teres ficado tão perturbada?
Todos se entreolharam e fixaram a tia. Esta balbuciou, sem qualquer justificação:
      - O doutor Daniel já tem os resultados dos exames. E levantou-se, de rompante, em direção à cozinha.
Por alguns instantes, todos ficaram em silêncio. Foi Maria Teresa quem quebrou o embaraço:
      - Então, quer dizer que já lá podemos ir!
 E foram.
O doutor Daniel pediu que lhe servissem o café no seu local favorito, sob o telheiro do jardim das traseiras. Tinha duas visitas de rotina para fazer, mas estava certo de que os Meireles não tardariam. A empregada conduzi-los-ia até ele.
De facto, pai e filha não se fizeram esperar.
      - Boa tarde, doutor –cumprimentaram os visitantes. Pedimos desculpa, por entrarmos, assim, por aqui adentro, mas a Albertina indicou-nos este caminho.
      - E fizeram muito bem. Fazem favor de se sentarem.
Não aceitaram café. Tinham acabado de almoçar. Estavam bem assim. O médico não insistiu. Aliás, com o nó que deveriam ter na garganta, não o recomendaria. E foi direto ao assunto:
      - Imagino que estão um pouco ansiosos e, por isso, sem mais delongas, digo-lhes que a Maria Teresa, em termos de saúde, está ótima. No entanto, como todos nós, tem os seus pontos fortes e fracos. Não se trata de uma doença, propriamente dita, mas é alérgica a algumas plantas e flores e sofre de intolerância à lactose o que, tudo conjugado e sobrepondo-se, muitas vezes, lhe tem causado todos os incómodos que conhecem. E o doutor Daniel explicou, detalhadamente, o que tudo aquilo queria dizer, o que eram alérgenos e as precauções que implicavam. Quando terminou, perguntou a Maria Teresa:
      - Por acaso, não se recorda se houve alguma quebra na sua rotina relativamente a locais onde tenha estado ou ido ou algo diferente que tenha comido, por altura desta última crise?
      - Não me lembro de ter feito nada de especial. No primeiro dia em que comecei a sentir falta de ar e um aperto na garganta foi na quinta da minha avó. Uma das minhas primas fazia anos e foi preparado um lanche ao ar livre, à sombra das árvores, junto ao muro. Não apanhei sol e estava fresquinho. Quanto à comida, não comi nada que me pudesse ter causado a má-disposição que se seguiu.
      - Mas, se bem me lembro, além do velho freixo que dá o nome à quinta, há, por lá, umas acácias não é verdade? – indagou o médico.
      - Sim, é verdade. Há bastantes e estão lindas, todas em flor – confirmou Maria Teresa
O médico sorriu e disse:
      - Ora, aí está, uma beleza a evitar! A flor de acácia é uma das suas grandes inimigas, o seu grau de alergia à mesma, é muito elevado. Seguem-lhe a flor de oliveira e as gramíneas. De facto, o espaço de manobra não é grande para quem, como a Maria Teresa, vive numa quinta. E laticínios – acrescentou o médico - costuma comer?
      - Muito pouco. Não gosto de leite e como muito pouco queijo. Só abuso do requeijão com o doce de abóbora, da tia Clotilde e…, mas agora me lembro: nessa semana comi requeijão várias vezes.
      - Pois, aí tem. E olhe que o seu grau de intolerância à lactose é considerável. Para já, vou-lhe fazer algumas recomendações mais específicas, receitar- lhe um anti-histamínico e um descongestionante, para qualquer primeiro sintoma e vamos, sobretudo, estar mais atentos. Em caso de qualquer episódio semelhante aos que costuma ter, deve tentar recordar - se dos alimentos que ingeriu e a que vegetação ou tipo de atmosfera esteve exposta.
      - Quer dizer que é possível que haja outros alérgenos, como nos explicou, há pouco? – perguntou Antero que se mantivera calado, quase todo o tempo, surpreendido com  o problema da filha.
      - Exatamente. A alergologia é uma área de estudo ainda muito recente e sobre a qual temos muito mais perguntas do que respostas. Uma coisa é certa: as alergias devem ser levadas a sério porque, dependendo do tipo e do grau, podem ser fatais.

Esclarecidos e mais tranquilos, pai e filha encetaram o caminho de regresso. Não escolheram o caminho mais curto. Queriam prolongar aqueles momentos a sós. É que, finalmente, Antero estava ansioso por saber, ao pormenor, tudo o que tinha acontecido, em Lisboa, na sua ausência. Esta caminhada, juntos, dar-lhe-ia a possibilidade de estabelecer, com a filha, aquele clima de cumplicidade que lhes era tão grato. Ele sentia-se necessário, ela sentia-se ouvida, e tudo isto, sem estratégia e sem fanatismo.
Em casa, foram recebidos com alguma ansiedade, ludibriada com risos nervosos e um lanche especial ao qual Alexandre tinha sido convidado a juntar-se, pela tia Clotilde. Esta, não tirava os olhos da estrada e, até o portão tinha sido, naquele dia, deixado displicentemente aberto, para que pudesse vê-los aproximarem-se e preparar-se para o que do seu semblante transparecesse. E foi a vivacidade dos seus gestos e a evidente boa disposição, de ambos, que encorajou Clotilde a falar primeiro:
      - Estava a ver que ias perder o meu requeijão, hoje, Maria Teresa!
      - E vou, tia. Infelizmente, o seu delicioso requeijão tem os dias contados – retorquiu a rapariga, trocando com o pai um sorriso brincalhão.
      - Mas, o que é que se passa com o meu requeijão? Alguém me pode explicar o que aconteceu? – perguntou a tia, algo desapontada.
Todos ouviram a explicação dada por Maria Teresa, com alguma perplexidade. Mas onde é que já se vira, uma coisa assim?! Mas que maçada!
Foi a vez de Antero acrescentar:
      - Mas isso, não é tudo! Vamos ter de abater a acácia junto ao portão oeste da quinta, para evitar problemas.
      - Nem pensar! – irrompeu Maria Teresa, intempestiva – ela chegou primeiro, eu é que vou ter de me acomodar!

Quem não estava disposta a acomodar-se era Maria de Jesus. Contudo, … nem mesmo ela própria imaginava o que o futuro lhe reservava.


                                                                                                               ( continua )

sábado, 31 de agosto de 2013

A MADRINHA (7)

Na Casa dos Álamos, acordava-se cedo. O anúncio do novo dia era dado pelos passos abafados da tia Clotilde e da velha governanta as quais, a pouco e pouco, se iam rodeando de sons e de cheiros que antecipavam, com vantagem, as badaladas do velho relógio de sala, que ressoavam por toda a casa. A estas, juntavam-se as vozes dos jornaleiros que, aos magotes, se vinham chegando, para a faina do dia. Enquanto o Sr. Rafael, acompanhado do Miguel, distribuía o trabalho e dava as últimas instruções, a família reunia-se, na grande cozinha do rés-do-chão, para a primeira refeição do dia. Este era o ritual familiar preferido de Maria Teresa. Aquele cheiro a café e pão frescos conseguiam despertá-la do sono mais profundo. Às vezes, no Inverno, ainda voltava para a cama, mas não num dia como aquele, com a sua estufa a ficar linda e com Alexandre a cuidar de todos os detalhes. Tinha acabado de se reunir à família, na cozinha, quando Miguel apareceu, à porta, com um vistoso açafate de figos lampos.
      - Bom dia, patrões! Isto estava em cima da mesa de pedra junto à adega e suponho que será cá para casa. De qualquer modo, não podem continuar lá, porque daqui a pouco bate lá o sol. 
Todos pareceram surpreendidos, menos Antero.
      - Fazes ideia de quem lá pôs os figos? – perguntou Clotilde ao cunhado, estranhando a sua falta de curiosidade.
      - Como é que queres que saiba, se eu ainda não saí de casa?
Ainda a família especulava acerca da origem dos figos e já Miguel estava de volta, com informação útil:
      - Afinal, o António Chora diz que quem lá pôs os figos foi a viúva do Zé da Tia e que esta comentou que a menina gostava muito de figos e que lhe parecia que, este ano, tinha tido poucos.
      - Pronto, está esclarecido o mistério dos figos – comentou Antero, tentando mudar de conversa.
      - Mas, está esclarecido, como? E onde é que a viúva do Zé da Tia tem as figueiras ou coisa que o valha? Ela não tem onde cair morta! Quase vive da caridade alheia! - ripostou Clotilde, exibindo a sua perspicácia.
      - Cá para mim, deram-lhos a ela e como eram demais, resolveu oferecer estes à Maria Teresa. E, virando-se para a filha:
      - Só tens que lhe agradecer!
Claro, claro! Mas lá que ela está bem informada, está!
      - Bem, tempo não lhe falta! - resmungou Clotilde, entre dentes, preparando-se para levantar a mesa.
No pátio, Antero Meireles cruzou-se com os homens do Cabeço que se preparavam para retomar o trabalho, na estufa. Deu os bons-dias e, quando passou pelo Alexandre, disse em tom discreto:
      - Diz à tua mãe que eu lhe agradeço a amabilidade.
      - Mas, o que é que há para agradecer? - perguntou o rapaz, um pouco intrigado.
      - Ela sabe – respondeu Antero, já uns metros mais à frente, dirigindo-se à cavalariça. Estava na hora de percorrer as propriedades, perpetuando o seu hábito do efeito surpresa. Nunca ninguém sabia, nem os próprios filhos, quando aparecia, onde aparecia, e quantas vezes aparecia no local onde, nesse dia, decorriam os trabalhos. Não havia nada como o respeito, condimentado com uma pitada de receio, para manter o pessoal na linha. Se assim não fosse, os abusos não tardariam.

Às obras na estufa, outras se seguiram na Casa dos Álamos, deixando atrás de si um rasto de modernidade e funcionalidade que, embora ainda incipiente, contrastava, fortemente, com as dos seus pares. Saltava à vista que o casamento de Maria Teresa e Alexandre não tardaria muito. E assim foi. O casamento foi marcado para Maio, o mês favorito de Maria Teresa. Tinha que ser em Maio!
      - Porquê Maio? É um mês como outro qualquer! –inquiriu o irmão mais novo, só para a picar.
      - Porque é o mês das flores e do tempo bonito! – esclareceu a irmã.
      - Sim, se descontares as trovoadas e o vento a assobiar por todo o lado, talvez tenhas razão – respondeu o irmão, afastando-se, enquanto trauteava uma canção lamecha, em voga.
Mas os ventos não correram de feição para a Casa dos Álamos e, em vez de um casamento, o mês de Maio trouxe-lhes, sem aviso prévio, aquela febre inexplicável que, recorrentemente, acometia Maria Teresa. Durante mais de uma semana, a febre, associada a alguns distúrbios respiratórios e digestivos, deixaram Maria Teresa num estado de prostração tal, que o casamento foi adiado. Para Setembro. Junho estava demasiado próximo e os meses áridos de Julho e Agosto estavam fora de questão. Além disso, o Dr. Daniel, o novo médico, entendeu que era tempo de aqueles achaques serem investigados, a sério. Para gláudio de toda a família, especialmente dos mais bem informados.
Maria de Jesus não sabia o que havia de fazer com a dor no peito, que tinha voltado. Não queria preocupar mais o Meireles. Sabia como os homens lidam mal com a doença e o mal-estar físico. Além disso, Antero estava sozinho. Clotilde era cunhado-dependente; a mãe, de idade avançada, requeria, ela própria, cuidados e repouso que a irmã, Júlia, providenciava, como se cuidasse de um valioso livro de dois volumes em que um deles corresse o risco de se perder; quanto às outras duas irmãs, ambas estavam demasiado ocupadas a evitar que o novo avançasse sobre o velho, que as modernices, como elas diziam, transpusessem os portões da Quinta do Freixo e tomassem, de assalto, os velhos hábitos e costumes daquele lugar, onde tudo era solene e tinha hora e sítio marcados. Para as tias e respetivas famílias, Maria Teresa, simplesmente, não tinha cuidado com o sol, comia fruta apanhada da árvore, gostava de vaguear pelos estábulos, enfim, nem parecia uma Meireles. Depois, sofria as consequências. Mas não porque elas não avisassem!

Maria de Jesus não tinha tempo a perder. Procurou o doutor Daniel e contou-lhe o que sabia da história daquelas febres, na família do pai de Maria Teresa. Claro, que ela nunca tinha ouvido ninguém falar nisso, mas os registos do Dr. Justino lá estavam, preto no branco. Duas tias – avós, do lado paterno de Antero Meireles tinham um historial de febres e outros distúrbios associados, em tudo semelhantes aos de Maria Teresa, e que os médicos nunca conseguiram explicar. Uma delas tinha, mesmo, falecido em plena crise e as notas do Dr. Justino, sobre o acontecimento, estavam cheios de pontos de interrogação.
O Dr. Daniel inspirava-lhe confiança. Apesar de muito novo, tinha talento, ambição e muita vontade de saber, três armas que Maria de Jesus considerava poderosas nas mãos de um homem que tem consciência de si. Os pais tinham morrido num acidente, quando estava a começar os estudos na Universidade, mas, ficara-lhe juízo bastante para, com a ajuda do avô, continuar a sua viagem. O mundo dos estudos tinha-lhe servido de refúgio e de bordão e o seu futuro auspiciava-se brilhante. Recebeu Maria de Jesus, gentilmente, e ouviu-a com toda a atenção.
      - Sabe, não quis preocupar mais o Antero, mas achei que o doutor devia saber tudo isto. Pode ser importante para os orientar nos exames a fazer – disse Maria de Jesus, pedindo, mais uma vez, desculpa por o ter incomodado.
      - Fez muito bem, não vale a pena sobrecarregá-los com mais preocupações. E fico satisfeito por me ter disponibilizado estas notas. Penso que vou seguir algumas destas pistas que, aliás, os relatos de Maria Teresa confirmam.
      - Oxalá, que tudo se esclareça e que a Maria Teresa se consiga livrar destes incómodos. É que, fora estas crises, é uma rapariga cheia de vida e que parece que vende saúde! – acrescentou Maria de Jesus.
       - Felizmente, hoje, temos outros meios que os médicos desse tempo não tinham. E há doenças a que só agora se começa a prestar a devida atenção. Estou convencido que é o caso da de Maria Teresa.

Quando a febre desapareceu e o seu estado geral o permitiu, Maria Teresa e o pai rumaram a Lisboa. Aguardavam-nos dois quartos de hotel nas imediações da Clínica Santa Helena e uma série de consultas, exames e análises, na referida clínica, sob a orientação da enfermeira Isilda, prima de Alexandre. O pai regressou no dia seguinte, um pouco a contragosto, mas rendido à simpatia de Isilda que insistiu para que Maria Teresa se mudasse para casa dela, enquanto os procedimentos médicos o exigissem. Faziam companhia uma à outra e ainda haveria um tempinho para lhe mostrar um pouco de Lisboa. Podia ir descansado. Maria Teresa aproveitaria, também, para conhecer o resto da família. Assim, já não seriam ilustres desconhecidos, quando se encontrassem, no casamento. Pareceu-lhe bem. E Antero regressou aos seus afazeres.

                                                                                                                      ( continua )

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

MADRINHA(6)

A estrada seguida por Antero Meireles bifurcava a cerca de 1 Km do perímetro da aldeia e era aí que o seu caminho divergia do de Maria de Jesus. Virou à direita, para a Lameira Redonda. Já agora, aproveitava para verificar em que fase estava a limpeza das árvores do pomar a qual, a julgar pelo tempo lá despendido por três dos seus homens, deveria aproximar-se do final. Uma vez chegado, percorreu, apressadamente, o vasto laranjal calado como lápide, calculou mais um dia de trabalho e encetou o caminho de regresso. Às suas ordens, a montada seguiu a passo até ao Alto da Sobreira, onde uma imponente sobreira centenária sobressaia de um pequeno tufo de outros sobros mais novos, cujos troncos nus, recentemente descascados, quais Fénix da flora, marcavam presença forte na tonalidade do conjunto. A discordar, pela singularidade, mas emprestando-lhe uma beleza única, duas cevadilhas de porte mediano, em rosa e branco, entrelaçavam-se uma na outra, disputando com os vizinhos a atenção dos transeuntes. Antero apeou-se e prendeu a égua a uma delas. Procurou um pequeno monte de pedras e sentou-se. Dali, poderia ver Maria de Jesus aproximar-se, sem ser visto. Absorto, fitou a linha do horizonte e o seu pesadelo voltou.

De repente, um leve relinchar da égua fê-lo voltar-se na sua direção. Esta levantava a cabeça e preparava-se para abocanhar um pequeno ramo que lhe roçava o pescoço. Antero levantou-se, de um salto. Santo Deus! Mas onde é que ele estava com a cabeça, para ter prendido o animal a uma árvore traiçoeira como aquela? Pois, não tinha sido ele que tinha mandado arrancar todas as cevadilhas plantadas junto aos estábulos e currais, quando se mudou para a Casa dos Álamos? Estas constantes brechas no seu estado de alerta começavam a preocupá-lo. Tinha mesmo que falar com a Maria de Jesus.

O sol acabava de se pôr, quando a mãe de Alexandre apareceu na curva da estrada. À cabeça, carregava uma cesta de vime donde sobressaia uma folhagem que, à distância, Antero não conseguiu identificar. Na mão, segurava um pequeno sacho e caminhava ligeira, como era seu hábito. O pai de Maria Teresa deu-lhe algum avanço e só depois de ela entrar na estrada principal é que estugou o animal, de modo a alcançá-la, ainda fora da aldeia.
      - Boa tarde, Maria de Jesus! Parece que vais apanhar o comboio! – cumprimentou, apeando-se.
Maria de Jesus parou. Pousou a cesta no pequeno muro de pedra que ladeava a estrada e retribuiu o cumprimento:
      - Boa tarde! Não, já tenho comboio que chegue por uns tempos! Daqui a pouco são é horas de jantar e os meus homens são fracos cozinheiros.
      - Ah, pois, ouvi-os dizer que tinhas ido fazer uma visita à capital, mas também referiram uma ida ao médico. Estás com algum problema de saúde? Pareces-me bem - acrescentou Antero.
      - E estou. Eles é que me saíram uns grandes linguareiros - ripostou Maria de Jesus, tentando mudar o rumo da conversa. Apontou o cesto dos figos lampos e ofereceu:
     - É servido? Estão fresquinhos. Apanhei-os cedo e têm estado dentro da casa de pedra.
Não percebo porque não me tratas por tu. Somos praticamente da mesma idade – fez notar Antero tirando um figo do cesto.
      - Porque nunca tratei e não é agora que vou começar. Está muito bem, assim – respondeu Maria de Jesus, assertiva.
Antero pareceu pouco à- vontade. Pegou num figo e comentou, enquanto o comia:
      - Este ano, a minha filha está farta de reclamar. Deixei secar duas das nossas melhores figueiras lampas e as outras não deram grande coisa. Diz que eu só cuido das coisas que me dão lucro e como os figos lampos não são para vender…
      - E isso é verdade? – perguntou Maria de Jesus, encarando-o.
Antero Meireles reagiu, mostrando algum desconcerto:
      - Claro que não! Isso são ideias dela!
      - Então, tens de plantar novas figueiras e provar-lhe que está errada.
      - Esse desejo é fácil de satisfazer. O pior é o que não está ao meu alcance – balbuciou Antero com voz trémula e um brilho aguado no olhar.
      - De que é que estás a falar? Há algum problema com a Maria Teresa? – perguntou a mãe de Alexandre, imaginando a resposta.
      - Não sei se há, mas poderá haver, não te parece? – inquiriu Antero, com algum desalento. E continuou:
Até ao momento, não tinha pensado muito nisso porque, para mim, a Maria Teresa era uma criança crescida que, felizmente, não me dava problemas. Mas agora, da noite para o dia, dou de caras com uma mulher que, legitimamente, tem um namorado e pensa, com certeza, casar e ter filhos e isso veio acabar com o meu sossego.
Com um sorriso calmo, Maria de Jesus interrompeu-lhe o desabafo, com um leve gracejo:
      - Credo, homem! Daqui a pouco está a dizer-me que está preocupado com a ida dos netos para a tropa! Deixe o tempo fazer o seu trabalho, que todos nós havemos de fazer o nosso!
      - Mas tu sabes o que aconteceu à minha mulher e à irmã mais velha. Acho que dois casos, na mesma família, são motivo para grande preocupação. Eu nem quero pensar no que seria, se acontecesse alguma coisa à minha filha -  respondeu Antero.
      - Não há de acontecer nada, se Deus quiser! Lembre-se que os partos dos seus rapazes correram normalmente. Além disso, as coisas mudaram muito nestes últimos anos e quase tudo pode ser previsto e evitado. Basta um bom acompanhamento médico e ter-se em atenção a história da família, embora, neste caso, as duas histórias não tenham nada a ver uma com a outra – disse Maria de Jesus, com alguma hesitação.
      - Não têm? Como é que sabes? A única pessoa que poderia esclarecer tudo isso, está incapacitado de o fazer já há alguns anos e não há volta a dar. O Dr. Daniel diz que está tudo bem com a Maria Teresa, mas gostaria de saber, exatamente, o que aconteceu em ambos os casos, mas ninguém, na família, sabe ao certo. Há muitas versões diferentes dos factos e a Tia Josefa , a parteira, há muito que não está entre nós – lamentou Antero, em voz fraca.
       - Refere-se ao Dr. Justino, não é verdade? – perguntou Maria de Jesus. E acrescentou:
       - O senhor não deve estar lembrado, mas eu estive em sua casa, no dia do nascimento da Maria Teresa, aliás, devo ter sido das primeiras pessoas a pegar-lhe ao colo, porque a família estava toda completamente desorientada. Como sabe, o Dr. Justino não era um simples médico de aldeia, também estava bem informado e bem relacionado em Lisboa. Troquei algumas palavras com ele sobre o acontecido e fiquei a saber que ele fazia registos detalhados de todas as situações que considerava relevantes para a história clínica das famílias com quem privava e lembro-me de ele me ter dito, nessa altura, que a situação da sua cunhada tinha sido completamente diferente. No caso desta última, a probabilidade de sobrevivência, tanto dela, como do filho, seria sempre mínima, mas, no caso da sua esposa, tinha sido um caso típico da parteira que, devido à sua longa experiência acha, até à última hora, que dá conta do recado e, só tardiamente, alerta a família para a necessidade da presença do médico.
      - Lembro-me perfeitamente de te ver falar com o médico nesse dia, por isso é que me lembrei de falar contigo, podia ser que te lembrasses de alguma coisa que nos pudesse ser útil –retorquiu Antero.
      - De facto, eu imaginei que, mais dia, menos dia, todos vocês começassem a ficar preocupados com o assunto e foi por isso que fui visitar o Dr. Justino.
      - E ele reconheceu-te? Está lúcido? Lembra-se de alguma coisa? –perguntou Antero, em catadupa, tentando dar  vazão  à sua ansiedade.
      - Claro que não! Mas também não era isso que eu esperava. Eu só queria confirmar a existência desses registos e mostrá-los a alguém entendido no assunto, para ter a certeza que a minha memória não me tinha atraiçoado.
      - E daí, a tua ida a Lisboa! – aventou Antero, mostrando um alívio ainda receoso.
      - É verdade – confirmou Maria de Jesus - a irmã do doutor autorizou-me a copiar toda a informação que havia sobre os dois casos e eu levei-a à minha sobrinha Isilda que é enfermeira- chefe na Clínica de Santa Helena. Por sua vez, ela discutiu o assunto com os médicos da especialidade e garantiu-me que, neste momento, um caso daqueles seria muitíssimo improvável que acontecesse, desde que houvesse um acompanhamento médico normal e se tomassem providências básicas. Mesmo a situação da tua cunhada, hoje está perfeitamente identificada e, sabendo-se que há esse antecedente na família, é só redobrar os cuidados. 
      - Nem imaginas o peso que me tiraste dos ombros! Tu és, realmente, uma pessoa muito especial! Quem me dera que a minha filha tivesse sido criada por alguém como tu! Não é que a Clotilde não lhe seja dedicada e não a trate como uma filha, mas tem pouco golpe de asa e tem uma natureza muito contrária à da Maria Teresa. A minha irmã Júlia ainda se ofereceu para se encarregar dela, mas, sabes como é, a Clotilde além de tia era também madrinha do batismo e, por aqui, a lei de Deus ainda se sobrepõe à lei dos homens.
       - Bem, tenho que ir andando – disse Maria de Jesus – mas, antes, queria pedir-lhe que esta conversa fique só entre nós. Quando achar oportuno passar essa informação à Maria Teresa ou a outros membros da família, faça-o como sendo resultado de indagação sua. Quanto aos registos, eu fá-los-ei chegar às suas mãos. É que eu gosto pouco de pôr o carro à frente dos bois. Teria feito as mesmas diligências, por qualquer outra pessoa e em qualquer outra circunstância. Não tem nada a ver com o Alexandre. Ele não sabe de nada, nem tem de saber.
      - Fica descansada. E obrigado, pelo cuidado! – agradeceu Antero, visivelmente emocionado. E saiu a galope, com a leveza do mensageiro que se sabe portador de boas novas.

Por uns instantes, Maria de Jesus ficou a vê-lo afastar-se, e desaparecer, na curva da estrada. Sentiu avolumar-se o aperto que sentia no peito. Respirou fundo, para recuperar o fôlego. Era pena que aquelas fossem só uma parte das notícias. As boas. Mas… havia outras. 

                                                                                                                ( continua )

quinta-feira, 18 de julho de 2013

A MADRINHA(5)

Era um domingo quente de fim de Junho. Em casa de Maria de Jesus tinha-se acabado de almoçar. Na sala, de janelas semicerradas para evitar o faiscar do sol nas vidraças, havia um silêncio recolhido e sonolento de manhã de missa e augúrio de tarde de sesta, para António, e de algum trabalho menor, por parte dos filhos que, em tempo de estio, aproveitavam a sombra frondosa do arvoredo do quintal, junto ao tanque de água fresca. Levada pelo torpor que se instalara à sua volta, Maria de Jesus ainda deslizou os braços sobre a mesa, decidida a render-se à mornez do  momento, mas, de repente, recompondo-se dessa letargia, tão contrária à sua natureza, exclamou:
      - Na próxima semana, vou a Lisboa!
      - Vai aonde?! – perguntou, meio estremunhado, o filho mais velho. 
      - Disseste alguma coisa? – quis confirmar António, para ter a certeza que não estava a sonhar.
      - É como lhes digo, há muito tempo que não vejo as minhas irmãs e os meus sobrinhos e tenho lá uns assuntos a tratar.
E levantou-se, em direção à cozinha, prometendo regressar com uma limonada bem fresquinha. Os homens, entreolharam-se e encolheram os ombros. Estavam habituados às suas decisões repentinas e sabiam que não valia a pena tentar demovê-la. Além disso, estava, mesmo, muito calor.

As obras, que se avizinhavam, trouxeram grande azáfama à Casa dos Álamos. Em breve, tudo teria que estar a postos para a grande mudança. Maria Teresa mal cabia em si, de contente. É verdade, que teve que ouvir as mil e uma recomendações da tia Clotilde, e alguns remoques por parte dos irmãos, mas o que era isso, comparado com o facto de, durante algum tempo, ter Alexandre portas adentro, cuidando de assuntos da família? E a oportunidade não se fez esperar. O recado chegou com o Sr. Rafael, o capataz da casa, que acabara de se cruzar com o António do Cabeço. Este, também já se tinha acertado com os pedreiros e os materiais seriam descarregados, no dia seguinte, antes do almoço. Como era seu hábito, António tomou a seu cargo a supervisão de todo o trabalho e, tal foi a sua exigência quanto à arrumação de tudo, no espaço disponível, que nem deu pela hora de almoço, que já ia adiantada.
Foi o Meireles que assomou à porta da cozinha e lembrou:
      - Então, vocês, hoje, não almoçam?! O trabalho pode esperar! Além disso, a Maria de Jesus já vos deve estar a rezar pela pele! Já é tardíssimo!
Foi Guilherme quem respondeu:
      - Não se preocupe, Sr. Meireles, isto está quase pronto e, quanto à minha mãe, ela está em Lisboa, só vem depois de amanhã.
      - A Maria de Jesus, em Lisboa?! Mas há, por lá, algum azar? – inquiriu o pai de Maria Teresa entre  surpreendido e preocupado.
      - Acho que não, mas disse que tinha lá uns assuntos a tratar. Está aqui está de volta e logo saberemos notícias.    
Antero Meireles ficou pensativo. Não se lembrava de Maria de Jesus alguma vez se ter ausentado da aldeia. E logo para Lisboa, assim, sozinha, sem mais nem menos. Alguma coisa tinha acontecido. Pensando melhor, lembrava-se de ela ter ido a Lisboa com a família ao juramento de bandeira do filho mais velho, o Eduardo, mas isso era diferente.

No dia seguinte, Antero teve que se conter para não puxar logo a conversa sobre a ausência de Maria de Jesus. A meio da manhã, contudo, enquanto desenrolava, com Alexandre, uma corda que se tinha emaranhado, voltou ao assunto:
      - Então, a tua mãe foi matar saudades de Lisboa?!
      - Não me parece! – respondeu Alexandre – Ela anda preocupada com qualquer coisa. Já, na semana passada, fez uma visita muito misteriosa ao Dr. Justino, na Vila de Cima, mas diz que são lá coisas dela e não se descose.
      - Será que ela se sente doente e não quer que vocês saibam? -  indagou Antero, visivelmente intrigado– têm que estar de olho nela, porque ela é rija, mas não é de ferro!
      - Ela garante que não é nada com ela e, de facto, se ela não se sentisse bem, o senhor acha que ia ao Dr. Justino? O Dr. Justino já teve o seu tempo e não exerce medicina há muitos anos. Porque é que ela lá iria?
      - Sim, de facto…tens razão. Ele já nem as gripes novas deve reconhecer.

A referência ao Dr. Justino, contudo, fez tocar o sinal de alarme, na cabeça de António Meireles. E o pânico instalou-se. No resto do dia, manteve-se calado e um pouco alheio ao que se ia passando, por ali. O seu ar, apreensivo e ausente, levou António a indagar:
      - Se houver alguma coisa que não esteja a contento, é só dizer! O Sr. Meireles é que manda!
      - Ora essa, António! Para mandar, é preciso perceber alguma coisa do assunto e não é o meu caso. Está tudo ótimo, vocês é que sabem. Eu é que não acordei muito bem-disposto, deve ter sido qualquer coisa que não me caiu bem ao jantar – desculpou-se o dono da casa, aproveitando para pedir ao Miguel que fosse ao poço buscar as cervejas que lá tinha colocado, logo pela manhã, dentro de uma cesta, para refrescarem. Era só puxar a corda e, pronto.
A noite saiu-lhe longa e enrodilhada de pesadelos e o seu estado de espírito também não melhorou, no dia seguinte. A notícia do regresso de Maria de Jesus trouxe-lhe algum ânimo. Precisava de falar com ela. Só não sabia como. Foi o Zé da Berta, um dos pedreiros, que lhe deu a oportunidade:
      - Com o calor que está, uma ida a Lisboa também deve ser um bom petisco! Comboios cheios de gente e a pararem em todas as estações. A Maria de Jesus deve vir pelos cabelos!
      - Isso não é para a minha mãe. Mal chegou a casa, já estava a dizer que, esta tarde, ia para o Vale da Lapa. E que só contássemos com ela lá para o sol-posto. Nem perguntei o que é que ela ia fazer. Já sabemos que, quando não tem que fazer, inventa - sublinhou Eduardo, em tom condescendente.
Ora, aí estava, uma boa ocasião para falar com ela. Não ia ser difícil provocar um encontro acidental. Eram quase seis horas, quando os homens despegaram do trabalho do dia. Mal eles viraram costas, Antero mandou aparelhar uma das éguas e rumou à Lameira Redonda, a uns escassos quinhentos metros da propriedade de Maria de Jesus. Para os da casa, avisou que estaria de volta à hora de jantar. Da janela do primeiro andar, Maria Teresa ainda o chamou para lhe perguntar onde é que ele ia àquela hora, mas, num ápice, já Antero tinha esporeado a égua e desaparecido na esquina da latada.
                                                                                                                       (Continua)